Mais que novo direito, unanimidade no STF é recusa a uma discriminação
injusta, diz pesquisadora
DEBORA DINIZ
Imagine um juiz da mais alta corte do País proclamar que "sexo não é
uma reprimenda dos deuses frente ao gênero humano, mas um regalo da
natureza". Ou que "pertencer ao sexo masculino ou feminino é apenas um
fato que se inscreve nas tramas do imponderável, do incognoscível, da
química da própria natureza". Pois foi assim que o ministro Ayres
Britto, relator da ação de união civil entre pessoas do mesmo sexo,
abriu a votação histórica que considerou a união civil um direito que
independe das práticas sexuais dos casais. Se afetos e desejos regem
as relações intersubjetivas para o projeto de família, casais
heterossexuais e homossexuais igualmente devem ser protegidos por
nosso ordenamento jurídico. A votação foi unânime.
A astúcia do relator alçou voos mais do que poéticos como é sua marca
na corte. O ministro Britto falou de sexo e prazer e lançou a norma
heterossexista para escanteio, ao inspirar-se em Nietzsche para
proclamar a supremacia da liberdade individual no campo da
sexualidade. Sem rodeios, declarou que a repressão sexual era uma
"criação dos homens", em uma citação sem lirismo de Foucault. Mas foi
sóbrio e reafirmou os limites à liberdade sexual: estupro, incesto e
pedofilia estão fora desse quadro argumentativo, pois são violações da
liberdade sexual de outras pessoas. Os limites foram como um aposto ao
vocativo de abertura do advogado que representou a voz da CNBB na
tribuna - "poligâmicos, incestuosos, alegrai-vos. Eis aqui uma
excelente tese para justificar os seus comportamentos", disse, em tom
jocoso, já prevendo qual seria a decisão do tribunal.
A verdade é que somente como retórica popular e conservadora a ação de
união civil poderia ser comparada a um novo estado de anomia no campo
da regulação da sexualidade na sociedade brasileira. O que o STF
decidiu foi uma demanda justa por reconhecimento - casais gays serão
protegidos pelo Estado e terão seus direitos garantidos. Uma demanda
simples, devendo ser entendida antes como uma recusa às interpretações
injustas e restritivas que mesmo como um novo direito. Todos os
ministros citaram o artigo 3º da Constituição Federal, que veda a
discriminação por sexo. Impedir que duas mulheres sejam reconhecidas
como uma entidade familiar para fins de proteções jurídicas é,
portanto, uma discriminação injusta. Foi com essa simplicidade
argumentativa que a ação saiu vitoriosa da corte.
Nem tão simples foram os flertes com as teorias feministas e de gênero
para sustentar que a anatomia não é um destino para os corpos. Vencer
a tese de que a descrição anatômica das genitálias demarca o campo das
sexualidades possíveis foi um desafio mais tortuoso que sustentar a
igualdade entre heterossexuais e homossexuais. Alguns ministros
optaram por escapar desse terreno movediço que levou Simone de
Beauvoir a afirmar que "o corpo é uma situação" ou que "não nascemos
mulheres, mas nos tornamos mulheres", para concluir que nossos desejos
sexuais não estão programados por nossas genitálias. Grande parte dos
ministros fez uso de uma categoria romântica e bem recebida aos
ouvidos de uma sociedade patriarcal - o afeto. Afeto é o que aproxima
os fora da lei de gênero da norma heterossexista sobre como devem se
guiar as relações familiares. Para um homem e uma mulher, há o amor e
a paixão; para os gays, a felicidade e o afeto. Mesmo não sendo um
jogo retórico inocente, essa foi a estratégica argumentativa possível
para o sucesso de uma ação que provoca os fundamentos de uma ordem
social centrada na família heteronormativa, que falsamente presume a
biologia como um destino.
O ministro Gilmar Mendes anunciou que a ação pode ter sido o início de
um novo tempo em que o "pensamento do possível" nos mostrará os
desdobramentos de famílias gays serem legitimamente entidades para a
vida pública. Se por "pensamento do possível" surgirem demandas por
comparação entre a união civil e o casamento, adoção de crianças,
acesso às tecnologias reprodutivas, além de conquistas mais prosaicas,
como representação dos novos arranjos familiares nos livros didáticos,
nas histórias infantis ou nos programas de televisão, um verdadeiro
horizonte de igualdade foi aberto com essa decisão do STF. Não há por
que temer as mais diversas surpresas que essa ação nos provocará - a
igualdade é ambiciosa e a força do movimento gay mostrará o conjunto
de domínios da vida que as novas famílias ocuparão.
O STF considerou que essa decisão rompeu um longo "silêncio
eloquente". A origem do silêncio é a homofobia, um falso preconceito
moral que subordina e oprime os fora da lei de gênero heterossexista.
Mas a ordem jurídica democrática mostrou seu vigor - mesmo sem a
devida mudança de mentalidades da sociedade brasileira, o princípio da
igualdade saiu vitorioso. As 60 mil famílias que se declararam gays
para o Censo 2010 podem sair do armário sem medo da insegurança
jurídica. A mais alta corte do País declarou o fim da clandestinidade
para elas.
DEBORA DINIZ É PROFESSORA DA UNB E PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE
BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO (7/5/2011)